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O parto de Flora

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Há dois dias da data prevista para o parto, entre paradas para ver as vitrines e fazer xixi (adeus, bexiga!), caminhei 3 horas e meia pelo centro da cidade. Andaria outras 3 horas e meia se fosse necessário, já que energia não me faltava.

Voltei para casa e, logo depois do almoço, as contrações de treinamento que sentia há dias deram lugar a contrações doloridas. O intervalo entre elas era mais louco do que os meus pensamentos e a duração, mais inconstante do que os meus sentimentos. Passei a tarde toda assim, até que à noite perdi um coágulo de sangue. Como ele era relativamente grande e eu tinha passado por uma cesárea há dois anos, tanto a doula quanto a enfermeira plantonista da maternidade onde teria minha filha me sugeriram que fosse ao hospital dar uma olhada.

Peguei marido pela mão e fui me despedir da mais velha, que teve seu sono interrompido pela movimentação. Ela estava em sua cama e, ao saber que sairíamos no meio da madrugada, ela chorou. Meu coração partiu, mas havia alguém no meu útero precisando mais de mim naquele momento. Confiei-a a minha mãe e fui; levando a barriga, mas deixando meu coração em casa com ela. Essa seria só a primeira vez, de tantas, que teria de deixá-la em segundo plano. Mas falemos sobre isso depois.

Ao chegar ao hospital, fui para a sala de triagem. Fui examinada, passei um tempo tendo minhas contrações monitoradas, mas ainda não era hora. Ainda não era A HORA. Voltamos para casa, marido, a pequena na barriga e eu.

A terça-feira chegou, anunciando a véspera das 40 semanas de gestação, e trouxe consigo mais contrações doloridas. Além das dores (absolutamente suportáveis), sentia que ia perdendo um pouquinho de líquido. Beeeeem pouquinho. “Não pode ser a bolsa que estourou! Bolsa quando estoura é que nem na novela, né? É aquele aguaceiro.” Sabe de nada, inocente. A noite chegou e eu continuava assim, perdendo um cadinho de líquido transparente aqui e ali, e sentindo dor num ritmo cada vez mais apertado e menos irregular.

Depois de conversar com a doula e a enfermeira plantonista sobre o que vinha sentindo durante todo o dia, fomos para o hospital mais uma vez. Naquela noite, não seria eu a colocar Nina para dormir. Ela estava em sua cama, de pijama, tomada banho e segurando um de seus livros. “Filha, mamãe vai para o hospital porque acho que hoje é o dia de buscar sua irmã, tá?” “Tá bom, mamãe, eu vou ficar aqui e não vou chorar”. Chorei eu, então. De orgulho daquela menina que, mesmo tão pequena nos seus dois anos, parecia saber que eu precisava de sua bênção para me sentir mais tranquila e poder cuidar da outra que estava por vir.

Tudo ia bem no carro até que na porta do hospital, quando descíamos do táxi, meu aguaceiro de novela. Chuáááááá! Era a bolsa, rompida. “Eita porra!!!” Eu ria. Na sala de triagem um exame rápido confirmou: “é mesmo líquido amniótico que você está perdendo. Essa noite você fica conosco”, disse a enfermeira com um sorriso. Levantei da maca para ir até a sala de parto e mais novela, mais aguaceiro, mais perto da hora de pegar a pitica nos braços.

Já na sala de parto, tendo minhas contrações e os batimentos da bebê monitorados o tempo inteiro (dos pequenos inconvenientes de ter passado por uma cesariana anteriormente), passamos um susto. Num determinado momento, nossa menininha na barriga teve muita dificuldade de recuperar seus batimentos cardíacos entre uma contração e outra. Se aquilo acontecesse novamente, teríamos de partir para a cirurgia.

Era quarta-feira, manhã das 40 semanas. O risco de ir para a sala de operação parecia ter passado e a porta da sala de parto se abriu. Veio juntar-se a nós nossa doula. Ela trazia nas mãos seu café e um sorriso. Nos abraçamos, conversamos e eu ia levando o trabalho de parto numa boa, anestesiada, é verdade, mas não a ponto de não sentir quando meu corpo ia fazendo a sua parte. As contrações aconteciam e eu as sentia, mas sem o peso que eu não conseguia carregar.

Acho que passei 80% do trabalho de parto de olhos fechados. Conversava, ria, chorava, sentia dor, sentia alívio, vivia tudo de olhos fechados. Era a minha bolha dentro da bolha. Marido e doula cuidavam de mim e trabalhavam para que eu ficasse o mais concentrada possível naquela tarefa tão grandiosa. Eu pude, então, acessar um lugar que era só meu. Veja bem, nem era meu e da minha filha. Era meu mesmo. E aquele lugar só meu, que eu só cheguei porque me entreguei, porque confiei, porque estava sendo cuidada, era inimaginavelmente bom.

O tempo foi passando e eu estacionei nos 6 cm de dilatação. “Droga!” Quer dizer, droga mais ou menos, eu já estava feliz por ter entrado em trabalho de parto naturalmente, em ter perdido minhas águas – como se diz em francês –, em poder ter sentido aquela dor que não é de morte mas de vida… No entanto, o fantasma da cesárea me rondava de novo, pois foi aos 6 cm que meu colo do útero parou e minha primeira filha, então no bucho, entrou em sofrimento fetal.

Nesse momento, a doula sugeriu que eu fosse para a bola de pilates. Lá fui eu sentar naquela esfera vermelha, tendo marido sentado (?), agachado (?), sei lá! logo atrás de mim, me suportando, me abraçando, me segurando, me beijando, tocando a região do meu sacro com uma das mãos cada vez que uma contração vinha (que alívio que isso me dava!).

Na minha boca de vez em quando aparecia um canudo, de onde saía suco de laranja. Era a doula me nutrindo. “Mas eu quero mastigar gelo”, dizia a grávida de olhos fechados. E fez-se gelo no copo. A sensação que eu tinha era de que se eu pedisse um mamute cor-de-rosa, coberto em ouro, que soubesse cantar “Beijinho no ombro” em aramaico, marido e doula o trariam para mim. Eu não tinha preocupações, eu não tinha medo, eu não tinha pressa. Eles fecharam hermeticamente a bolha, aquela bolha que era nossa. A que era só minha foi vedada pelas minhas pálpebras, a materialização da minha entrega.

Uma hora e meia pesando meu corpo sobre o do marido naquela bola, eu voltei para a cama e tive a dilatação avaliada pela minha médica de família (residente) e sua orientadora. Elas disseram algo e marido e doula pareciam felizes. A grávida cansada, sentindo dor há dois dias, não entendia aqueles sorrisos. “O que aconteceu?” “Você está com dilatação total, Camila. Seu colo está completamente dilatado, aberto, pronto.” “Sério???? Vocês estão falando sério? Peraí! É verdade?”

Sim, era verdade.

E eu ri. E eu chorei. Chorei porque ia ter meu parto vaginal depois de ter vivido uma cesárea provocada por uma indução que só depois soube ser desnecessária. Chorei porque logo teria minha segundinha nos braços. Chorei porque eu voltaria para casa mais cedo para estar com minha mais velha. Chorei porque sentia que eu tinha dentro de mim todas as mulheres do mundo que quiseram parir pela vagina mas não conseguiram. Chorei porque, ao contrário do que uma cesariana me fez acreditar, meu corpo era capaz de parir. Chorei porque todo medo do parto desconhecido havia sumido.

Como toda a reserva universal de alegria parecia estar naquelas lágrimas, as contrações pararam. Simplesmente assim. Eu era pura adrenalina. E adrelina não ajuda menino a sair.

Sem contrações, fiz um pouco de força para ver se o corpo entendia que era hora de retomar os trabalhos. Não surtiu efeito. Só é hora de empurrar quando é hora de empurrar. A meninica no bucho ainda precisava descer um pouco mais, aparentemente. A gestante cansada não conseguia e, sobretudo, não queria andar, mas era preciso. Marido e doula, então, seguraram minhas pernas e as movimentaram simulando uma caminhada enquanto eu me mantinha deitada na cama. E assim foi por alguns minutos. Até que as contrações voltaram. E segui empurrando, a cada sinal do corpo. E me cansando, e me desanimando e sentindo dor.

Duas enfermeiras entraram no quarto trazendo os instrumentos de praxe para uma eventual necessidade. E eu só queria que elas sumissem. Exausta, com dor, aos 45 do segundo tempo, eu resmungava, de olhos fechados: “eu não quero que ela nasça agora.” “Por que?” “Porque eu vou ter de cuidar dela quando ela sair, mas eu quero dormir. Eu tô com muito sono.” “A gente cuida dela por você.”

Era tudo o que eu precisava ouvir.

Deitada sobre o meu lado esquerdo, tendo a doula à direita puxando minha perna contra minha cabeça cada vez que uma contração vinha, e marido assistindo tudo de camarote, senti sair parte da cabeça. “Eita porra!!!” A médica, como quem se depara com a coisa mais simples e natural do mundo, delicadamente usou o indicador para puxar o cordão umbilical que estava enrolado no pescoço da menininha. Mais um pouquinho de força e saiu a cabeça inteira. Mais uma contração e Flora revelava-se ao mundo, com seus 52 cm e 3,151 kg. Foi trazida pelas mãos do pai, diretamente da vagina para os meus braços. Ela estava calma, roxa e me fitava de olhos bem abertos. Não choramos, nem ela nem eu.

Toda felicidade dos mundos estava ali naquela tarde. As cortinas da sala de parto abertas, deixando o sol entrar. E eu forte outra vez, pronta para materializar sozinha o tal mamute, se assim fosse necessário.


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